Por Anderson Gonçalves Costa e Ruthe de Paula Dias (UNILAB)
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Esse mundo moderno [...] é eivado de marcas contraditórias. Parte dessas marcas refere-se à presença de elementos da cultura medieval. Entretanto, isso não significa que conviviam contraditoriamente com a cultura moderna, em vez disso, muitas delas foram as condutoras das mudanças que introduziram, desde o século XII, características modernas na cultura medieval (FALCON E RODRIGUES, 2006).
O moderno causa espantos sobretudo quanto à sua própria concepção: seria ele tão atual quanto o foi na Idade Média? Certamente esse questionamento possa surgir em salas de aula e o professor de História deverá conduzir a discussão demonstrando os elementos da transição entre o medieval e o moderno, nem sempre marcados pela ruptura, mas também pela continuidade e as marcas contraditórias, a que se referem Falcon e Rodrigues (2006) na epigrafe utilizada acima. São as marcas dessas contradições que nos fazem questionar o novo.
Como mencionado pela Profª. Drª. Silviana Fernandes Mariz, do curso de Licenciatura em História da UNILAB, na disciplina A Expansão Europeia: pode algo mais medieval do que dizer-se descobridor? Referindo-se a expansão marítima, o questionamento nos incita de modo peculiar a reconhecer os elementos do novo. Como se sabe, a Idade Moderna na sala de aula é definida por temáticas já tradicionais, a citar:
- o Renascimento
- a Reforma e a Contrarreforma
- o Antigo Regime
- as Grandes Navegações e a Conquista da América
Recorreremos às Grandes Navegações e a Conquista da América para discutir um recurso interessante como ferramenta pedagógica: a iconografia cartográfica. Nesse sentido, estabeleceremos alguns marcadores que definam os usos e abusos nesse tipo de intervenção em sala de aula. Como marcas do novo e do contraditório, os mapas são fontes riquíssimas para compreensão do imaginário social, do pensamento do “eu” sobre o “outro” e mesmo para percepção do “tecnológico”. Especificaremos nessa seara a temática Cartografia e Cultura.
Assim como o fazer historiográfico teve suas bases alternadas a partir de 1929, o Ensino de História tem hoje a sua disposição fontes diversas que alternam às possibilidades do cotidiano e evitam o uso da História escolar apenas como disciplina informativa. Quanto a isso, deve-se alertar que à alternativa a uso de recursos iconográficos não deve ser utilizada como contraponto ao marasmo da sala, mas, percebida suas potencialidades e fragilidades e articuladas a outros materiais que possam significar a experiência do ensino de História. Não podemos perder de vista os escritos de March Bloch quando questiona,
Se a história, não obstante, para a qual nos arrasta assim uma atração quase universalmente sentida, só tivesse isso para se justificar, se fosse apenas, em suma, um amável passatempo, como o bridge ou a pesca, valeria a pena todo o esforço que fazemos para escrevê-la? (BLOCH, 2001, p. 44).
Desse modo, num movimento de perceber a história e a historiografia na sala de aula, bem como as fontes utilizadas, partimos do pressuposto de que essas fontes devem ser encaradas, a depender das suas finalidades originais, como elementos passiveis de críticas, tendo em vista que seu uso deverá ser transposto ao campo didático (a respeito, ver a publicação Imagens no Ensino de História: fragmentos, vestígios e ecos antigos)
Na imagem abaixo vemos somente o Brasil:
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DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FALCON, F. J. C.; RODRIGUES, A. E. M. A formação do mundo moderno. 2.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
FONSECA, T. N. de L. e. Iconografia, imaginário e expansão marítima: elementos para a reflexão sobre o ensino de história, DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO I, N. 1, P. 163-172, NOV. 2007. Dísponivel em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/dominiosdaimagem/article/view/19262/pdf_26.
LOPES, Jonathan Felix Ribeiro. Cartografia histórica e geopolítica do espaço brasileiro no contexto da colonização da América do Sul (séculos XVI-XVIII). Universidade de Lisboa, 2016. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/27138.
SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
Cartografia e Cultura
A partir desse momento pretendemos contribuir com o uso da iconografia cartográfica em sala de aula, não esgotando o debate em torno da temática. Assumimos que diante da complexidade "das salas de aulas" os critérios estabelecidos abaixo podem não funcionar, mas, o professor pode ressignificar seus usos. O que queremos dizer com isso é que não objetivamos a fixação de fórmulas, pois temos experienciado a heterogeneidade das salas, das turmas, das escolas, das redes de ensino. Ainda assim, diante do risco, apontamos alguns passos que cremos serem úteis ao tratar de cultura e cartografia.
Por que cultura e cartografia? Se pensarmos no imaginário presente nas descobertas do séculos XIV, construído pelos europeus e perpetuados por diversas maneiras, sejam elas as cartas de viagens ou os mapas, chegaremos a conclusão que o pensamento da época esteve marcado por crenças e valores que, digamos, eram anacrônicos. Seriam esses os elementos contraditórios aos quais nos referimos anteriormente, marcas do passado em um presente, não pelo movimento da transição, mas da permanência.
Refletidas na condução das rotas marítimas (Fonseca (2007) afirma que existiam dificuldades que pouco tinham a ver com
problemas técnicos, mas com o imaginário daqueles homens que temiam o mar), o apego a esses valores propiciou a existência de um mundo fantástico, exótico, idealizado pelo português. Conforme trata Warren Dean (1996), a "sobriedade imaginativa" dos portugueses destoava dos espanhóis, impactando diretamente no projeto da empresa colonial. Os primeiros eram movidos por mitos sobre ilhas, povos fabulosos. Esse mundo, o do outro, foi marcado pelo embate entre culturas, na medida em que a visão paradisíaca também marcava a produção cartográfica, como veremos.
Já parou para pensar que até então o território que hoje habitamos não estava inscrito nos mapas? Assim, paremos para pensar: qual o significado de um mapa? Nesse caso, o mapa falava por quem e para quem? O período em que eles estão inseridos já sabemos, mas qual pensamento está contido em seu significado? Ter ciência dessas questões poderá facilitar o trabalho em sala de aula, principalmente na condução das discussões.
O trecho abaixo é esclarecedor para que possamos construir nossa análise em torno da temática:
Difícil imaginar o impacto e o significado da "descoberta de um Novo Mundo". Novo porque ausente dos mapas europeus; novo, porque repleto de animais e plantas desconhecidos; novo, porque povoado por homens estranhos, que praticavam a poligamia, andavam nus e tinham costumes fazer a gerra e comer uns aos outros. Eram canibais, afirmavam os primeiros relatos, cheios de curiosidade, exotismo e imaginação (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 21).Agora vejamos o mapa Terra Brasilis, de 1519, refletindo sobre algumas questões: (i) do ponto de vista histórico o que as imagens representam? (ii) em quais aspectos essa percepção do espaço diverge da atual?
Terra Brasilis. 1519, Tesouro dos Mapas. Instituto Cultural Banco Santos, 2000.
O mapa Terra Brasilis de Lopo Homem mostra a importância da costa brasileira para os portugueses e o quanto eles tinham conhecimento dessa região litorânea. Apenas dela, pois não se percebe, nesse momento, interiorização. Esse mapa também retrata os indígenas extraindo o pau-brasil e ao redor é possível ver diversos tipos de animais, demostrando a relação entre homem e natureza. Dessa relação poderíamos inferir uma série de outras questões, uma delas a própria devastação causada na natureza pelo português. Nesse momento, além de tratar de cultura e cartografia, o dialogo envolveria a História e o meio-ambiente. A ideia central da análise em sala de aula consistiria em levar aos alunos às perguntas feitas anteriormente e deixar fluir a leitura deles sobre outras questões. Além disso, seria interessante solicitar uma descrição do que eles viam, ensinando-os essa prática.
No mapa vemos uma distorção do espaço. Em termos geográficos há uma alargamento da costa, justamente o espaço conhecido por eles. Elementos do natural: papagaios, araras e outros pássaros. Para se ter uma ideia, muitos desses animais fascinavam os portugueses, por isso sua presença nesse mapa. Tanto o é, que a extinção de muitas dessas especies deu-se no espaço de anos em decorrência da exportação. Se observado também encontramos um dragão, elemento do imaginário, na margem esquerda da imagem.
Agora, podemos analisar um mapa do ano de 1502, dois anos mais tarde do "descobrimento". Estamos tratando do mesmo espaço? Que elementos divergem desse em relação ao anterior? Qual a percepção inicial sobre o espaço? Chama a atenção a presença de aves, esplendorosas e coloridas.
No mapa vemos uma distorção do espaço. Em termos geográficos há uma alargamento da costa, justamente o espaço conhecido por eles. Elementos do natural: papagaios, araras e outros pássaros. Para se ter uma ideia, muitos desses animais fascinavam os portugueses, por isso sua presença nesse mapa. Tanto o é, que a extinção de muitas dessas especies deu-se no espaço de anos em decorrência da exportação. Se observado também encontramos um dragão, elemento do imaginário, na margem esquerda da imagem.
Agora, podemos analisar um mapa do ano de 1502, dois anos mais tarde do "descobrimento". Estamos tratando do mesmo espaço? Que elementos divergem desse em relação ao anterior? Qual a percepção inicial sobre o espaço? Chama a atenção a presença de aves, esplendorosas e coloridas.
Na imagem abaixo vemos somente o Brasil:
Carta de navegar pela ilha novamente achada na parte da Índia. Oferta de Alberto Cantino ao Senhor Duque Hércules. Autor Desconhecido. Ano de confecção: 1502.
Era comum que os conquistadores relatassem o encontro com animais e plantas raras em suas viagens. Lopes (2016) explica que esse fascínio pelas árvores e aves está presente na carta de Pero Vaz de Caminha e possivelmente em outros relatos de outros viajantes. No mapa apresentado encontramos o deslumbre pelo natural, passando a ideia de uma terra fértil e produtiva.
O Planisfério de Cantino, de 1502, é uma carta que representava o mundo como era conhecido até então. Na confecção do mapa foi incluído representações da Europa, África, Oriente e a recém descoberta América. A importância de tal documento consiste exatamente nas informações confidenciais sobre a expansão portuguesa e o descobrimento de novos territórios. O seu nome faz referência a Alberto Cantino que conseguiu enviar uma cópia para a Itália, com o objetivo de revelar as conquistas marítimas dos portugueses.
O Planisfério mostra a costa brasileira, assim como o mapa Terra Brasilis, e contém alguns elementos reveladores do imaginário que permeava as viagens marítimas e a exploração de territórios desconhecidos. A imensidão das árvores, com suas folhagens verdes e seus troncos dourados, os arbustos azuis, e três pássaros gigantes representam esse mundo fantástico e misterioso que os navegadores esperavam encontrar.
Em uma das legendas do mapa há uma breve descrição sobre os povos nativos: Andam nus, homens e mulheres como suas mães os pariu, são mais brancos que baços e tem os cabelos muito corredios. Lopes (2016) chama a atenção para a semelhança entre tal descrição e os relatos da frota de Cabral e de Caminha. Ao se deter sobre as relações entre Colombo e os índios, Todorov (1983) também mostra descrições semelhantes e ressalta que a nudez era um dos principais aspectos que chamava a atenção do navegador, pois as vestimentas eram sinônimo de cultura.
Essa descrição dos índios também servia para indicar que os povos que ali viviam eram selvagens, incivilizados e de uma cultura inferior (segundo a ótica europeia). Todorov (1983) afirma que a atitude de Colombo em relação à cultura indígena era a de um colecionador de curiosidades e nunca vem acompanhada de uma tentativa de compreender. Sabemos que essa atitude, de Colombo e de outros colonizadores que vieram depois, levou à escravização e dizimação dos povos indígenas no Brasil. Atualmente a nudez ainda é uma das principais características que as pessoas usam para se referir aos índios, quase sempre como um sinônimo de atraso.
O professor em sala de aula pode levar essas discussões em relação ao imaginário relacionado à cultura utilizando os mapas aqui sugeridos e para enriquecer ainda mais a discussão sugerimos os relatos das viagens de Pero Vaz de Caminha, Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral.
Uma dica!
Indicamos a leitura do caderno de atividades do livro Brasil: uma biografia das professoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015, Companhia das Letras). O material está disponível on-line e apresenta atividades e analises que podem ser utilizadas pelo professor. Relaciona-se ao que discutimos nesse post o capítulo Primeiro veio o nome, depois uma terra chamada Brasil. Os arquivos encontram-se publicados no site da editora. Clica aqui!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, M. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FALCON, F. J. C.; RODRIGUES, A. E. M. A formação do mundo moderno. 2.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
FONSECA, T. N. de L. e. Iconografia, imaginário e expansão marítima: elementos para a reflexão sobre o ensino de história, DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO I, N. 1, P. 163-172, NOV. 2007. Dísponivel em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/dominiosdaimagem/article/view/19262/pdf_26.
LOPES, Jonathan Felix Ribeiro. Cartografia histórica e geopolítica do espaço brasileiro no contexto da colonização da América do Sul (séculos XVI-XVIII). Universidade de Lisboa, 2016. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/27138.
SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
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